Lara Rodrigues é mineira, de Uberlândia. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia, e mestre em Estudos Literários pela mesma instituição. Em suas pesquisas, a literatura, o cinema e a psicanálise se sobressaem. Embora seja ainda tímida no fazer literário, no momento, está (ar)riscando na escrita.
Por meio da palavra, é possível estabelecer novos sentidos ao que é do sujeito e ao que lhe acontece. Aliás, tanto o sentido quanto o não- sentido, ou mesmo o modo como reagimos e nos mostramos a nós mesmos, aos outros e ao mundo, têm a ver com a palavra.
É a partir da palavra que a prática da escrita acontece, dando origem a uma experiência, sobretudo, a literária. Entendo como experiência literária a feitura de textos que não corresponde a uma produção mercadológica e que se aproxima mais de uma criação – vocábulo que distancia o ato “de se fazer algo” da lógica utilitarista, burguesa e que visa sempre um lucro. Isso faz pensar, também, na diferença entre a cultura e a arte, para que não se confundam os fazeres próprios da primeira, relacionados somente ao entretenimento, à corroboração de lugares comuns, enquanto a segunda é fruto de uma fruição sem objetificação.
Às questões relacionadas à cultura e à arte nos perguntamos em que consiste a arte e a literatura. Para Maurice Blanchot, é necessário deixar ambas à margem dessas questões que as deslocam de seu caminho primordial: a volta a si mesmas. Deve-se, portanto, concentrar naquilo que a arte reclama: a obra – esta que existe fora de um poder e de seus limites impostos, como o de espaço e de tempo, por exemplo, que demandam as noções de utilidade e subserviência, enquanto a obra de arte passa por sua própria exigência, aquilo pertinente à sua tarefa. Desse modo, o que se materializa, daí, é para contemplação, objeto sem uso e que possui em si o seu próprio rumo.
Com base nisso, pretendo ensaiar, brevemente, sobre o fazer literário a partir do conto “A troca e a tarefa”, de Lygia Bojunga. Marguerite Duras, no texto Escrever, afirma que a experiência literária se liga a uma solidão: a do fazer a escrita e ser habitada por ela. A autora é um sujeito da experiência artística/literária cujos atos vêm de uma paixão, de um chamamento impossível de ser recusado. Ela se assujeita, como um mártir, a um testemunho público, mas na mais pura solidão, na mais completa impessoalidade – de estar sempre vulnerável e aberta ao fazer literário, como a narradora do conto a ser trabalhado.
O conto
O conto “A troca e a tarefa”, de Lygia Bojunga, narra, em primeira pessoa, a trajetória do contato da personagem, não nomeada, com o fazer literário. A primeira proximidade entre narradora e a escrita aconteceu por meio de um encontro anterior: com o ciúme. Enciumada de a irmã ser , aparentemente, mais valorizada pelos pais e pelas demais pessoas de seu círculo social, a narradora tenta, inutilmente, reprimir o sentimento, que é muito forte e faz, sua morada ali, na menina . Um dia , a narradora apaixona-se por um rapaz chamado Omar e escreve sua primeira poesia, intitulada “O mar”, o que lhe desperta uma felicidade nunca antes experimentada. A recém-escritora, porém, escondida em sua janela, observa ndo o garoto, percebe que ele encara uma outra janela: a de sua irmã.
Tempos depois, por conta do aniversário de 15 anos da personagem, a mãe envia uma carta anunciando que lhe fará uma festa; todavia, o noivado da irmã seria comemorado junto. A menina deve, então, viajar de seu colégio interno de volta para a casa, onde descobre que Omar, por quem estava apaixonada, é o noivo da irmã. Angustiada com a descoberta, ela foge da celebração para a praia; com medo de entrar no mar, deita-se na areia e dorme, tendo um sonho que mudaria o rumo de sua vida.
No sonho, surgem, no campo de visão da narradora, tapando o mar, duas janelas; em uma, estava escrito A TROCA, na outra, A TAREFA. As duas estavam fechadas. A menina bateu em uma e não teve nenhum resultado, mas, ao imitar o gesto na outra, alguém lhe pergunta o que quer. Ela pede que abra a janela, para que possa ver do outro lado – ela não vê nada. Porém, como resposta, a voz afirma poder livrá-la do peso daquele amor não- correspondido caso ela escreva uma história. Uma troca: a dor pela escrita.
A jovem acorda curiosa, não sabendo se conseguiria cumprir com a troca. A partir daí, a menina começa a transformar o mundo à sua volta com a escrita. Da mesma forma que transformou Omar em mar, fez do ciúme, algo que achava feio e ruim de olhar, um pássaro bonito e prendeu-o em uma gaiola para que não lhe perturbasse mais. Surge aí o seu primeiro livro, intitulado A gaiola.
A personagem torna-se, então, definitivamente, uma escritora. Ela escreve 26 livros. Antes de o vigésimo sétimo acabar, o sonho que tivera aos quinze anos volta. Do mesmo modo, ela bate no vidro da janela que não havia lhe respondido e, no peitoril, surge um bilhete em que se lê: “No dia em que você acabar a tarefa a tua vida acaba também”. Questionando-se sobre qual tarefa seria essa, vira o papel e lê no verso que a resposta está desenhada na parte da areia que fica mais junto ao mar. Ela pula, então, a janela e, no lugar indicado, avista a tarefa: desenhados na areia, estavam os 27 livros que escrevera. As ondas vinham e apagavam todos, exceto o último, ainda por terminar. Assustada, ouve, novamente, a voz que lhe falara sobre a troca, proclamando: “Cada um tem uma tarefa na vida. A tua é escrever 27 livros. Na hora que você botar o ponto final no vigésimo sétimo livro, a tua tarefa vai estar acabada e a tua vida vai terminar”.
A partir do segundo sonho, com medo de morrer, a narradora não escreve mais nada, pois qualquer coisa transformada pela palavra corria o risco de se tornar um livro, o último, o que a mataria. Ela tentou substituir o modo como transfigurava o mundo pela escrita com a pintura, mas não funcionou. No entanto, a falta da escrita adoece o seu corpo e ela decide, enfim, , terminar o seu livro; o aviso não lhe importa mais, ela sente a exigência de transformar o mundo gritar novamente. Ao escrever suas últimas palavras, a personagem morre; em rodapé, Lygia Bojunga faz uma nota: “A escritora morreu sem acabar a frase. Deram com ela debruçada na mesa, a ponta do lápis fincada na paixão”. Assim acaba o conto.
A experiência é um território de passagem
Em “A troca e a tarefa”, é possível notar uma provocação acerca do que são a experiência literária, a obra e a noção do criador da obra. A partir da palavra, a personagem do conto transforma o mundo à sua volta: o rapaz por quem se apaixona, Omar, no mar; o ciúme em um pássaro, que, ao contrário do sentimento, era bom de se olhar, mas devia permanecer preso, daí a gaiola. Isso porque é intrínseco às palavras produzir sentidos, criar realidades e se sobressair como dispositivos de subjetivação.
Dessa forma, é permitido afirmar ser o homem a palavra, pois fazer coisas com a palavra é, então, dar sentido ao que é o sujeito e ao que lhe acontece, ou seja, ao que experiencia – aos movimentos por que passa. Essa experiência é particular de cada um e só pode acontecer na solidão.
Conforme Marguerite Duras, é preciso estar só, numa solidão do corpo, distante das pessoas que a rodeiam, imersa em um silêncio, próprio, também, da obra, para que esta se constitua. Em “A troca e a tarefa”, a fim de se ter a experiência primeira da escrita – o sonho –, é necessário que a personagem fuja da festa, do público, do barulho, da espetacularização, ou mesmo do cotidiano automatizado: aniversários e festas de noivados, por exemplo. Essas diversões esterilizadas substituem a estranheza e caminham rumo ao decifrável, impossibilitando a interrupção – o parar para ver, sentir, escutar com vagar e delicadeza.
Dessa forma, o sujeito da experiência se mostra como um território de passagem afetado e que afeta o mundo, capaz de sentir e provocar efeitos naquele em que marcas são inscritas. Esse sujeito é disponível, aberto a uma passividade apaixonada, alguém que se “ex-põe” à vulnerabilidade e ao risco, como o fez a narradora de “A troca e a tarefa”. Dormindo, a personagem abre-se ao desconhecido da escrita, entrega-se a esse destino, passiva e apaixonadamente, sabendo-se não criadora, mas aquilo de que a arte se apossa para se exprimir, artista a representar o autor da obra que a arte lhe exige, conforme afirma Maurice Blanchot.
Segundo o espanhol Jorge Larrosa, a palavra experiência denota travessia, tendo em sua constituição o radical latino periri, e remete ao estrangeiro, exterior, por meio do “ex”, do mesmo modo, de existência. O sujeito da experiência, então, é o que atravessa as passagens de perigo, um indivíduo, conforme Larrosa, “alcançado, tombado, derrubado. Que perde seus poderes precisamente porque aquilo que faz experiência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido” e que possui o poder da formação ou transformação, de si e do mundo a seu redor.
Foto de Luísa Machado.